Tradução: Obra ou Serviço?

Um tema muito comum quando se discutem os serviços de tradução é a distinção entre tradução literária e tradução não-literária (também chamada, genericamente e de forma pouco precisa, “tradução técnica”). Uns afirmam que um tradutor deve especializar-se numa destas áreas; outros afirmam que os bons tradutores são bons em qualquer um destes tipos de tradução.

Esta divisão será mais bem compreendida se pensarmos em termos da especificidade da tradução literária no âmbito duma divisão bem mais complexa do que uma simples divisão binária. Seja como for, a realidade que este binómio tenta apreender será mais bem explicada se pensarmos na distinção mais importante no dia-a-dia dum tradutor: a distinção entre a tradução-obra e a tradução-serviço. Esta distinção tem por base a relação do tradutor com aquilo que traduz, o contrato que estabelece com o cliente, as expectativas, o uso da tradução, etc. Compreender esta distinção permite clarificar vários aspectos relacionados com a actividade da tradução.

tradução-obra consiste num trabalho de tradução assinado pelo tradutor, que se mantém o último responsável pela obra, mesmo depois da revisão da mesma (numa concepção pura da tradução como obra, o tradutor teria a responsabilidade de aceitar ou recusar cada uma das alterações propostas pelo revisor). A tradução é sempre vista como tradução pelo utilizador final (pelo leitor) e o tradutor aplica uma determinada perspectiva teórica sobre o acto da tradução (por exemplo: deve a tradução aproximar o texto à língua de chegada ou a língua de chegada ao texto de partida?). O tradutor fica sujeito à crítica, como qualquer autor duma obra. O enfoque principal deste tipo de tradução é na qualidade artística e linguística da obra. A transmissão mais ou menos fiel do conteúdo do original é uma das variantes que está em jogo, sendo aplicada segundo os modelos do próprio tradutor em relação ao que é a actividade de tradução. O tradutor pode ter uma “linguagem” própria, um estilo, ou pode tentar adequar-se ao estilo do autor. Esta concepção da tradução é utilizada na tradução literária, mas, em princípio, pode ser a base de qualquer tradução. Um artigo científico, por exemplo, pode ser traduzido desta forma, bem como qualquer manual ou texto.

tradução-serviço, por outro lado, é um serviço prestado por um individual ou uma empresa, que organiza internamente a produção da tradução ou subcontrata o serviço a um ou vários tradutores. O produto final não é assinado, é da responsabilidade da empresa de tradução ou do cliente que a contrata e é apresentado ao utilizador final como uma versão do documento na sua língua, sendo (idealmente) indiferente ler o original ou a tradução (ao utilizador pode nem sequer ser revelado qual é a versão original). Neste tipo de tradução, o tradutor é um dos profissionais que intervêm no processo, entre gestores de projecto, revisores, terminólogos, etc. A razão de ser de todo este “aparato” é a tradução em tempo útil de documentos comerciais, industriais e técnicos, cuja qualidade técnica e linguística deve ser garantida num curto espaço de tempo, com enfoque na função do documento e nas necessidades do cliente. O tradutor apaga-se, devendo ser “invisível” – o seu trabalho é um serviço e, na prática (independentemente do que “devia ser”), perde de imediato quaisquer direitos de autor a que poderia ter direito se a tradução fosse uma obra — exceptuando, obviamente, o direito ao pagamento do serviço prestado.

tradução-obra é um processo artístico, a tradução-serviço é um serviço empresarial, prestado, em geral, por empresas a empresas.

A confusão entre estes dois tipos de tradução pode ser perigosa. Utilizar a tradução-serviço para traduzir uma obra literária não só é difícil, como não permite conseguir uma obra coerente. Por outro lado, o modelo da tradução-obra pode ser aplicado a qualquer trabalho sem grande perigo. No entanto, é impraticável para uma grande parte dos trabalhos de tradução actuais.

Obviamente, esta distinção deve ser encarada com cautela. Serve de modelo, mas não serve para explicar todas as traduções. A tradução jurídica, em particular, tem características especiais que devem ser consideradas: um tradutor cria uma versão do documento original, mas esta versão não tem, em geral, o mesmo valor legal que o original, a não ser que seja juridicamente validada ou produzida internamente numa entidade com poderes para tal (por exemplo, a União Europeia).

Seja como for, penso que o modelo exposto acima ajuda a esclarecer algumas confusões em relação ao que se espera dum tradutor e permite aos clientes compreenderem a diferença entre traduzir um livro e traduzir um manual técnico. No fundo, todos estes exemplos são traduções, mas o processo envolvido e a responsabilidade pelo texto final são significativamente diferentes.

MN

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