O comer

As palavras têm muita manha. A mesma palavra pode ser aceitável ou não dependendo da região e meio social em que nos movemos — e da classe gramatical a que a própria palavra pertence.

Por exemplo, a palavra “comer”, enquanto substantivo, é usada em quase todo o país sem levantar celeuma — mas há regiões e meios sociais que lhe torcem o nariz. Se for verbo, já todos comem a palavra sem pestanejar. Em termos de correcção linguística, nada há a obstar à palavra usada enquanto substantivo: também dizemos “o saber não ocupa lugar”. As palavras saltam as classes gramaticais com grande facilidade (cf. Ciberdúvidas) — saltam com menos facilidade as classes sociais.

A questão é, de facto, puramente social. O mesmo se passa com “funeral”, “vermelho” — e por aí fora. Estes pequenos desacordos, que nada têm a ver com a palavra e o significado da mesma, têm depois reflexos naquilo que pensamos das palavras, dos outros, dos textos que lemos, da ironia que usamos. “O comer” é uma expressão inócua na boca de uma pessoa — e noutra pode ganhar contornos de ironia assassina, em jeito de paródia.

As palavras são um pouco vira-casacas e muito maleáveis — gostam muito de brincar com quem as usa e de saltar classes e ideias-feitas com uma facilidade que irrita alguns e espanta outros.

Tratem da fama e do comer,

Que amanhã é dos loucos de hoje!

— Álvaro de Campos, “Gazetilha”

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